segunda-feira, 26 de julho de 2010

ENTREVISTA COM ROSELY FORGANES

Rosely Forganes – integrante da equipe Rádio Brasil MPB – nasceu em Santos, mas mudou para São Bernardo quando tinha seis anos e idade. Fez o primário no Colégio São José, ginásio e colegial no João Ramalho. Cursou Jornalismo na Faculdade Objetivo e História na USP.

Ainda estudante, começou a trabalhar na Rádio Jovem Pan, no programa São Paulo Agora. De lá foi para o semanário Aqui São Paulo, dirigido por Samuel Wainer. Assim que se formou foi fazer Pós-Graduação em Sociologia e Jornalismo em Paris, onde trabalhou na Agência Noticiosa France Presse. Voltou ao Brasil e trabalhou no Departamento de Cultura da Prefeitura de São Bernardo, tendo passado em primeiro lugar no concurso.

Dois anos depois, em 1982, voltou a Paris, com uma bolsa de Doutorado em Ciência da Informação e da Comunicação, obtida numa seleção da qual participaram candidatos de todo o Brasil. Em Paris, trabalhou para a Folha de São Paulo, Diário do Grande ABC, Veja e a revista francesa Américas. Morou cinco anos na Bélgica como correspondente em Bruxelas.

Rosely Forganes foi correspondente da Rádio Eldorado durante dez anos, primeiro em Bruxelas, depois em Paris. Trabalhou ainda para a Revista Isto É, Marie Claire, Terra e Horizonte Geográfico.

Há alguns anos, acabou virando notícia, ao ser a única jornalista a investigar a viagem do então prefeito Celso Pitta a Paris, durante a Copa do Mundo de 1998, que a Justiça, com base nas denúncias da jornalista, está investigando se foi paga pela empresa francesa Lyonnaise des Eaux, proprietária da Vega Engenharia Ambiental, responsável pela coleta de lixo em São Paulo.

A denúncia levou ao processo de impeachment do prefeito, julgado em julho de 2000. Apesar de ter sido pedida por vários vereadores e pela Ordem dos Advogados do Brasil, colocada em votação mais de uma vez, a convocação de Rosely Forganes como testemunha foi recusada pela bancada governista. No entanto, dois processos na justiça foram abertos contra o prefeito e um contra a Vega Engenharia Ambiental, todos com base na investigação da correspondente da Rádio Eldorado.

Das 26 acusações contra o prefeito Celso Pitta, a Comissão Processante acatou 11 e o relator reteve apenas duas, o empréstimo feito por José Yunes e a viagem a Paris. Através de voto secreto, apesar dos pedidos da oposição para que fosse aberto, a Câmara dos Vereadores de São Paulo rejeitou o pedido de impeachment, mas a viagem do prefeito a Paris foi a que recebeu mais votos favoráveis de todas as acusações.

Mesmo tendo sido impedida de testemunhar, Rosely Forganes veio a São Paulo cobrir o impeachment como jornalista, pela Rádio Eldorado, quando teve a oportunidade de mostrar os documentos que detinha à imprensa e à população de São Paulo. Todos os documentos foram entregues à justiça pela correspondente da Radio Eldorado, que depôs nos três processos. A polícia ofereceu proteção policial à jornalista, que preferiu não aceitar.

A jornalista Rosely Forganes fala de sua experiência como repórter em zonas de guerra:

P- Há quanto tempo você é correspondente de guerra e quais foram as suas experiências?
R- Eu não sou exatamente o que se possa chamar de correspondente de guerra. Primeiro, porque “correspondente de guerra” não é uma profissão. Você é jornalista, que pode ser levado a cobrir guerras. Alguns fazem isso mais ou menos tempo, mas ninguém faz a vida toda, principalmente hoje, inclusive porque ficou perigoso demais. Correspondente de guerra agora é muito mais difícil que no passado, por incrível que pareça. E muito mais perigoso. Morreram mais jornalistas nos primeiros anos da guerra da ex-Iugoslávia do que em toda a guerra do Vietnã. Nós crescemos cultivando o mito da guerra do Vietnã, os jornalistas que cobriram o Vietnã sempre foram a referência. Pode crer que foi um passeio perto do que acontece hoje. Só na ex-Iugoslávia foram 52 até agora. As guerras não têm mais front, raramente um exército regular, os jornalistas são visados enquanto tal, por serem jornalistas. Quem está matando e cometendo atrocidades não quer testemunhas. Minha experiência na área também é relativa. Eu estive no Timor duas vezes, como enviada da Radio Eldorado. A primeira durante a intervenção militar de setembro de 1999 e fiquei quase um mês com o país inteiramente destruído, a segunda em agosto de 2000, para o primeiro aniversário do plebiscito que escolheu a independência. Fui fazer o mesmo país um ano depois. Antes disso, estive no Camboja ainda em guerra civil, na Albânia em pleno caos, na Birmânia, que é uma das piores ditaduras do mundo, tentando despistar a polícia política e entrevistar os dissidentes políticos, atravessei a ilha de Mindanao tentando escapar do Exército Moro de Libertação, que tem o péssimo hábito de sequestrar todo estrangeiro ao alcance da mão, mais de 60 já.

P- Como você foi parar no Timor?
R- Fui eu que pedi para ir e consegui convencer a chefia de redação. Posso garantir para vocês que não era nada evidente uma redação aceitar, mesmo aberta e com fortes ligações com o Timor, como é a Eldorado, que sempre deu atenção para a causa, quando ninguém mais falava nela. Eu não tinha a garantia de chegar lá. Ninguém tinha, aliás. Centenas de jornalistas do mundo inteiro estavam indo para Darwin, na Austrália, de onde saíam os aviões, tentando passar junto com os militares. O que as pessoas não entendem é que o mais difícil numa guerra é você chegar nela. Tente pra ver! Meu medo – e o da redação – era de não conseguir entrar, ou chegar quando o interesse já tivesse acabado. Foi uma verdadeira batalha. Comecei a entrar em contato com o exército francês ainda em Paris. Eles me disseram que levavam, mas tinham que seguir as condições da Interfet, a força multinacional criada especialmente para a intervenção e comandada pela Austrália. O absurdo é que a Austrália é o único país no mundo que reconheceu a ocupação indonésia do Timor. Eles exigiam um visto indonésio para entrar no Timor. Só que não existe visto de turista, não precisa. Tive que ir até a embaixada pedir um visto de jornalista. Acabei passando por uma sabatina em regra sobre o que eu pensava da situação. Meu avião era no sábado, na sexta, às seis da tarde, eles negaram o visto, dizendo que não havia segurança para os jornalistas, tinham acabado de matar dois. Mas decidi ir assim mesmo. Levei 48 horas para chegar até a Austrália, passando por Frankfurt, Bangkok, Jacarta e Bali. Foi uma odisseia. Quase fui presa no aeroporto de Darwin, por tráfico de comida, sério! Os militares tinham avisado que, como o país estava destruído, só levavam quem provasse que era autônomo, ou seja, capaz de se virar sozinho. Você tinha que levar o saco de dormir, pastilhas para desinfetar a água, porque não havia água potável e comida para o tempo que fosse ficar, porque não tinha absolutamente NADA no Timor. Eu levei uma sacola com 20 kg de comida, mas estava preocupada em entrar no Timor, não com a Austrália. Eu imaginava Darwin como um lugar deserto, onde só havia um aeroporto militar. Que nada, é uma cidade grande, cheia de frescura, com alfândega e tudo a que tem direito. E é proibido entrar com qualquer comida na Austrália. Quando vi o cachorro começar a farejar as malas na esteira de bagagem quase tive um ataque. Cheguei para o policial mais próximo e disse que não tinha entendido direito essa história de comida (mentira, claro) e que estava carregando sim, para entrar no Timor, que não ia ficar na Austrália. Ele examinou minhas malas, tirou metade, mas me deixou passar. Isso eram quatro horas da manhã, eu estava viajando havia três dias. Consegui um hotel, cheguei lá as cinco, às sete estava na rua, procurando os militares para arrumar uma jeito de chegar no Timor.

P- Mas você não estava com medo? Nessa altura você já sabia que dois jornalistas tinham sido assassinados.
R- É difícil explicar, mas você tem medo antes. Durante não dá tempo. Uma vez que você se lançou numa cobertura dessas, tem tantos, mas tantos problemas para resolver, que está sempre totalmente absorvida pela etapa seguinte. Você resolve um, aparecem três. Se você não tiver a cabeça muito organizada, não for capaz de se concentrar em cada etapa isoladamente, não dá conta. Eu tinha todas as razões do mundo para ter medo. O Sander Thoens, o jornalista holandês que morreu, era correspondente em Jacarta. Ele conhecia Díli [capital do Timor-Leste] muito bem e não sobreviveu duas horas! Imagine eu que nunca pus os pés no Timor! Mas o que me impressionou mais ainda foi a história de outro jornalista, que não morreu, mas caiu numa emboscada. O motorista foi assassinado na frente dele, recebeu uma katanada, aqueles facões imensos que as milícias usam, que fez um olho saltar da órbita. O jornalista americano escapou por pouco, ligeiramente ferido, mas completamente traumatizado, saiu do Timor correndo. Sabe quem era esse cara? Um veterano da guerra do Vietnã, do Afeganistão, escapou até dos Khmers Vermelhos no Camboja. Ele é o fotógrafo que aparece no filme Killing Fields [Gritos do Silêncio], que eu adoro e assisti umas vinte vezes. Se um cara desses quase morreu, eu então, vou virar farelo!

P- Mas você foi assim mesmo?
R- Aí eu já tinha decidido ir, já tinha convencido a Rádio, conseguido a passagem, falado com os militares franceses. Já estava naquela fase de resolver um problema de cada vez. Você tem medo 30 segundos e vai tratar do problema seguinte. É muito difícil alguém que nunca esteve na situação entender. Suponho que precise de uma certa dose de loucura também. Uma pessoa normal não faria isso. Todo mundo fugindo de lá e os jornalistas brigando para entrar. Não tinha mais nada, o país estava destruído, queimado, entregue às milícias, não tinha o que comer, onde dormir, toda a população fugiu se esconder nas montanhas, estavam matando os primeiros jornalistas que chegaram. E os outros querendo entrar. As pessoas olhavam para mim como se eu fosse uma extraterrestre, perguntando que diabo eu ia fazer lá eu brincava “Que jornalista resiste a um pacote turístico desses?”

P- Você sabia como ia mandar a matéria? Ainda mais para uma rádio?
R- Isso foi o pior de tudo. Enquanto eu preparava a viagem, com esses problemas todos, cuidava disso também. Eu sabia que o sistema de comunicações tinha sido destruído. Mas os telefones celulares estavam funcionando. Eu verifiquei, inclusive falando com oficiais franceses que tinham acabado de entrar em Díli. Ninguém me disse, EU mesma falei com eles pelo celular. Eu nunca tive celular na vida, odeio. Saí correndo e comprei o mais caro, que já em setembro de 1999, ligado ao laptop, tinha acesso à internet, fax, tudo isso. Um ótimo telefone custava 1 franco simbólico, ou seja, 15 centavos de dólar. O meu custava 400 dólares. Tive que fazer assinatura, pedir para ligar o internacional, que segundo eles levava 15 dias. Eu tomava o avião no dia seguinte. Mais um problema resolvido. Tive que passar a noite aprendendo a usar o celular acoplado ao laptop e colocando o material de camping na mala. Mas aí tudo bem, meu principal problema, mandar a matéria, estava resolvido. Eu tinha que me preocupar em chegar lá...

P- E aí?
R- Aí eu cheguei a Darwin, tive que descobrir onde ficava o Quartel General Militar, de onde eles me mandaram para a ONU, que cuidava dos jornalistas. Acabei ficando quatro dias em Darwin, à beira do ataque de nervos. Eu pensei que ia entrar no ato. Ou ficar acampada no aeroporto. Mas nunca tinha lugar no avião da ONU. Com a ajuda de um militar português, que cuidava da intendência da missão humanitária, eu já tinha conseguido lugar num voo. Até que alguém perguntou: “Rádio Eldorado, que organização humanitária é essa?” Me tiraram da lista... No final, enquanto a maioria dos jornalistas ainda estava esperando o avião da ONU, passando à conta-gotas, eu fui com os militares franceses num C-130 de transporte de tropas. No meio de um caminhão, coletes à prova de balas, bolsas de sangue e remédios para o hospital.

P- Tinha mais alguém?
R- Não, só eu. Bem que tentei levar um colega, mas como eu já tinha feito o contato muito antes, ainda em Paris, e pedi para meu amigo ir também no final – porque encontrei com ele lá – não colou. Não tinha nenhum passageiro no voo, só a tripulação e eu. Tem um cara, acho que é o mecânico, que abre e fecha as portas do avião, que não vai na cabine de comando, fica no mesmo lugar que eu. O comandante era uma moça, linda e simpática. No meio daquela tragédia toda, do estresse que eu estava passando, andar de C-130 de transporte de tropas foi a única farra, um momento de euforia. Quando eu entrei no avião é que caiu a ficha. Eu vou MESMO para o Timor, eu CONSEGUI! Aí bate o medo, você começa a se perguntar: e o que eu vou fazer quando chegar lá? Como vou sair do aeroporto? Mas já tem que amarrar o cinto, o que aliás, é complicadíssimo, colocar o tampão nas orelhas, porque o barulho dos motores é infernal. Entendeu porque não dá para ter medo? Mas eu tive o reflexo de gravar os motores, o que eu usei mais tarde na série especial para a Rádio Eldorado.

P- E aí, onde você ficou, se estava tudo destruído?
R- Os primeiros jornalistas que chegaram saíram pela cidade a pé, em direção ao hotel que eles ficavam antes, o Makota. Mas tudo estava destruído, queimado, revirado, cheio de lixo, animais mortos, cadáveres. A cidade fedia horrivelmente, estava cheia de moscas, as condições de vida eram dificilmente suportáveis. Alguns jornalistas acamparam ao lado dos militares atrás do Makhota, outros continuaram andando pela cidade, onde não tinha ninguém, e encontraram um convento que tinha sido abandonado pelas freiras, em frente ao mar. Era um dos raros prédios que tinha sido pilhado pelas milícias, mas não queimado. Cada jornalista chegou e se instalou onde pôde, primeiro dormindo em cima das mesas, depois conseguiram varrer os cacos de vidro, retirar o entulho. Cada um que chegava pegava um quarto, uma sala, aquilo que tinha e se instalava. Cada um colocava um cartão com o nome e o jornal, rádio, televisão que trabalhava na porta, inclusive para se achar uns aos outros. Durante quase um mês, uma sala desse convento abandonado, com um saco de dormir no chão e o cartão “Rosely Forganes – Rádio Eldorado de São Paulo” na porta, foi a sucursal da Eldorado no Timor-Leste. O meu era um dos únicos quartos que fechava à chave, inclusive porque eu tinha pego a secretaria. O pessoal brincava que eu tinha pego a suíte presidencial. O João Pedro, do Diário de Notícias de Lisboa, tinha uma igual, em frente. Uma das vantagens de chegar antes...

P- Vocês tinham segurança? Os militares protegiam vocês?
R- Nenhuma. E ninguém nunca pediu, que eu saiba. Nós já ficamos juntos como medida de proteção. Um jornalista sozinho numa casa abandonada, à noite, no escuro, era uma presa muito fácil para as milícias. Juntos, alguém podia escapar e dar o alarme. Pelo menos era o que a gente esperava! A função dos militares numa guerra não é proteger os jornalistas. Cada um é voluntário, está lá por sua conta e risco. Além disso, se você aceita a proteção, tem que aceitar também as condições dos militares. Ir onde eles deixam, não ir onde eles não querem que você vá. Isso limita muito o seu trabalho e a sua liberdade de informar. Eu não digo que seja sempre assim, mas no Timor, onde não havia um front, as milícias podiam atacar em toda parte, você tem que correr o risco. Ou ficar em casa. O pior é que algumas vezes os militares vinham lá no convento dizer “O nosso Serviço de Inteligência tem informações que vocês podem ser atacados pelas milícias esta noite. Então, se vocês quiserem, venham ficar conosco” O QG da Interfet era a umas seis casas dali, na mesma rua, no Hotel Turismo, o menos destruído. Quem queria ia, quem não queria, ficava. Nós começamos a achar que aquilo era uma espécie de terrorismo para assustar a gente e mandar embora. Díli estava cheia de barreiras militares, com sacos de areia, arame farpado, soldados com metralhadoras. Bastava colocar uma dessas barreiras antes do convento, não depois, como tinha uma, que a segurança aumentava. Não havia nem credencial ou credenciamento propriamente dito. Aliás, ninguém registrou minha entrada. O avião desceu na pista, um jipe com soldados franceses armados veio me buscar e pronto. Nem vi o aeroporto. Eu acho que era para deixar bem claro que cada um estava lá por sua conta e risco.

P- Como era a vida nesse convento?
R- Era difícil. Nós tomávamos banho de caneca, tirando de um balde, quando tinha, comíamos comida em lata, dormíamos no chão, com os bichos passando em cima. A maior parte do tempo faltava luz e o calor era insuportável. Eu não conseguia dormir à noite, era horrível. Não tinha água corrente, mas o pessoal logo achou uma senhora, a famosa Dona Manuela, que acabou virando personagem famoso nos jornais do mundo inteiro, que punha ordem na bagunça. Ela é uma timorense que tinha perdido tudo e, enquanto esperava notícias dos filhos, tomava conta da gente ali. Cada um dava um tanto por dia e ela achava pessoas para tirar água do poço com balde para nós, mantinha aquilo relativamente limpo, fazia alguma comida quente quando achava com que – geralmente arroz com folhas – porque era o que tinha. Uma vez eu cheguei e tinha um bolo maravilhoso, totalmente surrealista naquele momento, naquele lugar. Dona Manuela achou farinha, dois ovos, um pouco de fermento e fez um bolo que eu vou lembrar para sempre como um dos melhores que eu já comi na vida! Outra vez ela arrumou pudim de chocolate, com o tempo começou a fazer pão fresco! Até hoje somos grandes amigas, eu adoro Dona Manuela, nós vivemos coisas incríveis juntas. Acho que porque eu fui das que ficou mais tempo no convento, em parte porque as duas têm o mesmo gênio, a gente sempre se entendeu. Um domingo, quando eu já estava para ir embora, Dona Manuela me convidou para ir até a casa dela. Já fazia mais de um mês que tudo tinha sido queimado, mas ela não tinha tido coragem de ir até lá, ver o que sobrou. Nós arrumamos uma kombi caindo aos pedaços e fomos, só nos duas, atravessando um bairro cheio de militares indonésios armados. O chofer estava com tanto medo que nem queria levar a gente. Eu entrei com a Dona Manuela na casa dela pela primeira vez. Nem sei como, tive o reflexo de gravar. Na Rádio Eldorado, os ouvintes puderam escutar, ainda que mais tarde, na série especial, nós duas entrando na casa, pisando nas telhas, cacos de vidro, tropeçando no zinco, tirando o entulho para avançar... Foi muito, muito emocionante.

P- E os outros jornalistas, todo mundo na mesma casa, como era isso?
R- Nós éramos cerca de 40, alguns ficavam só uns dias, outros mais, mas era uma farra. Acho que isso foi o melhor de tudo. É o que eu chamo, brincando, de Bar Stars Wars. No filme aparece um bar com extraterrestres, todos mais esquisitos uns que os outros, falando línguas diferentes, contando histórias incríveis, completamente blasés, como se fosse a coisa mais natural do mundo, lembra? Você imagina quem estava ali, a nata da nata da profissão no mundo, gente que já viu tudo, que esteve em todo lugar, fez as coisas mais malucas, toda essa gente contando histórias noite adentro? Uns estavam vindo do Kosovo, outros saindo para a Chechênia, aquela loucura. Eu acho que não tinha ninguém normal ali. Aliás, é um alívio! Todo mundo me olha como um extraterrestre, como se eu fosse completamente louca por causa das coisas que eu faço. Ali eu me sentia perfeitamente normal, em casa! Era como se tivesse achado a minha família! Tinha gente muito pior que eu! E as histórias que cada um contava, era absolutamente fantástico, eu passaria a vida inteira ouvindo. Além disso, com gente de todo mundo, poucos são concorrentes diretos. Então, por razões de segurança, de comodidade, como usar um dos raros carros e por prazer também, um dia eu saía para trabalhar com a Florence, do jornal Libération, outro dia com o Bruno, do Le Monde, com a Ana Glória ou o João Pedro do Diário de Notícias de Lisboa, com a Cândida, da televisão SIC, com jornalistas japoneses, filipinos, holandeses, ingleses, era superinteressante. Além do que, para muitos, ali eu valia ouro. Eu falava essa língua exótica que é o português.

P- Você não teve problemas de saúde?
R- Nada de grave, mas sai dali um verdadeiro caco. Perdi cinco quilos – que infelizmente achei logo – porque quase não dormia, não comia porque não aguentava mais a comida em lata, o calor, as condições de higiene. Só tive uma inflamação na gengiva, deve ser a água – às vezes a gente via bichos dentro – e alergia nas mãos, por causa do calor. Encheram de bolinhas, que estouraram e a pele saiu. Fiquei com as mãos em carne viva. Mas podia ser muito pior. Eu fiz tratamento antimalária, como a cada vez para esses lugares, mas sem ter muita certeza que adiantava, porque a malária no Timor é do tipo falcípara, a pior que existe. Eu tenho todas as vacinas em dia, sempre, mas lá precisava da vacina contra a encefalite japonesa, que é mortal, mas não consegui achar em lugar nenhum. Depois eu soube que não adiantava, precisa de três doses, com um mês de intervalo.

P- O que você faz nesse caso?
R- Passa repelente. E reza! Mas nada disso importava. Não dormir, não comer, tomar banho de caneca, o calor, a malária, a encefalite japonesa, as milícias, isso não era nada diante do problema maior: não poder transmitir as matérias.

P- Justamente, como você fazia?
R- Nem me fale, estou traumatizada até hoje. Foi o pior de TUDO. Não gosto nem de lembrar. Bom, depois de todos os problemas – que eu resumi muito – cheguei a Díli num sábado. Entrei no ar, ao vivo, sábado e domingo, várias vezes, pelo meu fantástico celular, novinho em folha. Mas é na segunda de manhã, quando a audiência é realmente grande, que as coisas sérias iam começar. O fuso horário não é fácil. São 11 horas de diferença, a mais em Díli. Quer dizer, quando as coisas estão realmente acontecendo em Díli, é de madrugada no Brasil, ninguém escuta rádio às três da manhã, né? Para entrar no ar às sete da manhã, eu tinha que entrar às seis da tarde no Timor. Na segunda, eu chego na sala na qual o pessoal se reunia para o café – nós colocávamos muita coisa em comum – às seis da manhã e vejo todos os meus colegas de celular na mão, desesperados. O que aconteceu? Ninguém sabia, mas TODOS os telefones estavam mudos. Pânico total. Todos saem para investigar, uns vão falar com a ONU, outros com a Interfet, com os militares de cada contingente. O exército indonésio cortou as comunicações – TODAS as comunicações e ninguém sabe quando e se voltam a funcionar. Os militares também estão com problemas, só alguns tipos de telefones satélite e as antenas parabólicas funcionam. Na falta de melhor, nervosa, saio para trabalhar, esperando para ver o que acontece. Nada. Todos começam a se desesperar, ninguém consegue mandar matéria. Quase todos têm o mesmo modelo de celular, esse que faz tudo. Todos igualmente mudos. E isso vai continuar vários dias. Nós não falamos de outra coisa. O maldito telefone que não funciona concentra toda a nossa atenção e energia. Ninguém consegue mandar matéria, a não ser as televisões que têm antenas parabólicas instaladas. Aos poucos, o pessoal dos jornais consegue se organizar, passa o texto para disquete, pede para alguém mandar por e-mail via satélite. Mas como falar no rádio, entrar ao vivo em horário certo, falar cinco ou dez minutos?

P- E na redação, em São Paulo, eles sabiam o que tinha acontecido?
R- Não, claro que não. Esperaram que eu ligasse na segunda, nada. Terça, nada. Ninguém tinha como saber nem se eu estava viva ou morta. Não tem embaixada, ninguém para perguntar. Na Eldorado, todo mundo preocupado, mas totalmente impotente. Eu soube depois que tinha gente rezando por mim, mães de colegas meus inclusive. Na quarta no final da tarde, de manhã em São Paulo, eu consegui ligar para a rádio, do Quartel general dos Bombeiros portugueses que, aliás, eram os únicos do Timor. Eu falava do QG de incêndio mesmo, onde chegam as chamadas dizendo que pegava fogo aqui e ali. Eu liguei para a Rádio, disse onde eu estava e eles foram extremamente profissionais. Eles perguntaram: “Rosely, você está bem? Tudo bem com você?”. Eu disse que sim, que era só um problema de comunicação. Eles responderam: “Posso colocar você ao vivo, direto, agora?”. Aí eu falei algo como 13 ou 15 minutos – no rádio isso é uma eternidade – sem uma interrupção. Tudo parou na redação, todo mundo parou para ouvir, não entrou comercial, quem estava esperando para falar, ministro ou que fosse, ficou esperando na linha. A Eldorado era uma redação relativamente pequena, todo mundo me conhecia, eu era correspondente da rádio há dez anos, eles estavam realmente preocupados comigo. Numa situação daquela, tudo podia ter acontecido. Eu só estava preocupada em passar a matéria, mas para eles, que não sabiam o que estava acontecendo, eu estava desaparecida. No meio de uma guerra, onde dois jornalistas já tinham sido assassinados, outros atacados. Essa primeira entrada foi histórica, era impossível contar o que estava acontecendo sem emoção e a primeira frase que eu disse “Díli cheira a queimado” ficou gravada na memória de muita gente. Depois que eu falei como estava a situação geral, a destruição, a cidade deserta, com cadáveres ainda abandonados nas ruas, o Caio Camargo e o Felipe Bueno, apresentadores do Jornal Eldorado, começaram a me fazer perguntas. Aquilo que todo mundo estava querendo saber a essa altura, onde eu dormia, o que eu comia, se tinha segurança, essas coisas. Nessas horas a gente vê que o poder do rádio é fabuloso. Uma coisa é você ler um relato. Outra é você ouvir alguém que está lá contar. Tudo o que você viu, o que você está sentindo, passa através da voz, não tem por onde. Se você está cansada, se está com medo ou não, tudo passa. Eu demorei para entender por que a minha presença no Timor marcou as pessoas, acho que lembram mais de mim que outros jornalistas que estiveram lá. É a força, a magia do rádio. Você se transporta com quem está falando, se ele souber contar.

P- As pessoas ficaram impressionadas?
R- Eu acho que sim, eu sinto isso até hoje quando falam comigo. A Eldorado era única rádio do Brasil no Timor. Recebi e-mails fantásticos de ouvintes, continuo recebendo até hoje – o que me toca muito – e fico impressionada em como as pessoas lembram detalhes do que eu disse. Às vezes muito tempo depois! Na hora eu não me dei conta, eu estava preocupada em mandar a matéria, era tudo o que contava, mas para muita gente, acho que eu representei uma forma de coragem, uma espécie de heroína, de estar lá sozinha, naquele momento. Depois, refletindo sobre essa história toda, cheguei à conclusão que o fato de ser mulher também contou. Mulher e sozinha, eu não tinha uma equipe comigo, ninguém com quem pudesse contar para nada. Eu entendo que as pessoas se preocupem comigo, afinal de contas, elas me conhecem, eu tenho um nome, uma voz, algo com que elas possam se identificar, mas eu sempre tentei não chamar a atenção sobre mim, mas sobre a situação do Timor e dos timorenses. Como eu disse tantas vezes no rádio, eu estou aqui porque quero. Quando quiser ir embora, basta bater na porta dos militares e pedir “me tirem daqui!” Dificil é entrar, sair é facílimo. Os timorenses não têm essa possibilidade. Eu tinha o que comer, mesmo em lata, mas tinha. Eu tinha um teto sobre a cabeça, o que não era o caso de mais de 90% dos timorenses.

P- Como os timorenses reagiam aos jornalistas ?
R- Foi o mais emocionante. Eles diziam: “Vocês não têm nada com isso e vêm aqui arriscar a vida, viver nas mesmas condições que nós, podendo ser assassinados a qualquer momento. Se não fossem vocês, ninguém se importava conosco, nós já teríamos morrido todos. Muito obrigada por estar aqui”. Vindo de alguém que perdeu tudo, às vezes até a família, que está dormindo na praia – a população foi voltando aos poucos – quase não tem o que comer, é uma coisa muito, mas muito emocionante...E eu ouvi isso tantas vezes! Eles nos ajudavam, na medida do possível nos protegiam. Quem tinha salvo uma moto ou carro velho, mesmo caindo aos pedaços, servia de guia, motorista, andava com a gente pra cá e pra lá. Geralmente só pelo preço da gasolina no mercado negro. Alguns não queriam nem aceitar isso!

P- É possível ser neutro ou objetivo num caso assim?
R- É difícil. Mas você pode ser honesto, contar o que está vendo, tentar explicar o que está acontecendo. Quando existe um povo inteiro que está sendo massacrado, sem nem ter como se defender, não dá para ficar insensível. Ainda mais quando um dos lados te protege, te agradece por estar lá. E o outro tenta te matar! Mas eu não confundo as coisas. Quando eu saí de lá, não dava para enfrentar mais três dias de viagem sem parar, decidi descansar em Bali, que era meu caminho de casa Alguns colegas, portugueses principalmente, diziam “Mas você vai compactuar com o inimigo?” Que inimigo, vocês estão loucos? Não é o povo indonésio que está massacrando o timorense. É o exército, com as facções mais radicais à frente. Um exército que foi apoiado por potências ocidentais. Os indonésios também foram vitimas do exército durante mais de 30 anos. Por sorte, a Indonésia é um país que eu conheço bem, já tinha estado quatro vezes, gosto muito. Então eu sei que as coisas não são simples assim. E mesmo com a minha simpatia pelos timorenses, eu contava o que acontecia, sem omitir ou tentar embelezar nada.

P- Você continuou falando dos bombeiros portugueses até o final?
R- A novela não acabou ainda! Eu só entrava ao vivo de lá, não dava para conversar com a redação, para não abusar e por causa do fuso horário. Como em principio nós tínhamos combinado que eu ficaria uma semana- e com as comunicações cortadas ainda por cima- eu fui embora no fim se semana, certa de que não ia voltar. Em todo caso, deixei a comida e o equipamento de camping no quarto, entreguei a chave para a Dona Manuela e pedi para ela guardar tudo para mim até quarta-feira: “Se eu não voltar, a senhora fica com as coisas e dá o quarto para outro jornalista”. E fui de avião militar para Darwin. Tinha sido uma experiência incrível, mas eu tinha ficado com um gosto de derrota. Eu achava, sinceramente, que merecia ser despedida. Eu sabia que não ia ser, nós somos uma redação unida, com ótimas relações, eles iam entender as circunstâncias, extremamente difíceis. Mas eu estava terrivelmente frustrada. Quando liguei para o meu chefe, na segunda, estava amargurada. Foi para ouvir: “Mas a sua cobertura é um sucesso, você é uma grande repórter! Não quer voltar para lá? Você aluga um telefone satélite e se topar continuar enfrentando aquela barra, volta para lá quando quiser”. Eu caí dura. Era tudo o que eu queria, mas em nenhum momento me passou pela cabeça. Além disso, tinha e-mails fantásticos dos ouvintes, que a Eldorado repassou para mim, emocionados, elogiando, dizendo que eu merecia todos os prêmios do ano. Tinha outro e-mail, justamente do meu chefe, diretor de Jornalismo da Rádio Eldorado, Adhemar Altieri, que não endereçado a mim, mas a um monte de gente, a começar pela redação inteira, que ele escreveu pouco depois da minha primeira entrada. Eu fiquei olhando a tela, num cyber-café em Darwin, sem acreditar. Começava dizendo aos jornalistas, principalmente os jovens, para ouvir a minha entrada dezenas de vezes (de qualquer maneira a rádio ia repetir ao longo do dia), que eu era a encarnação mesma do jornalismo, do repórter que não está preocupado onde vai dormir, se tem o que comer, quando vai ser o próximo banho, nem mesmo com a própria segurança. Só está preocupado em passar a matéria. Verdade que eu só pensava nisso! Bom, aí eu aluguei um telefone satélite, o que não foi fácil, não tinha nenhum, todos estavam no Timor, e voltei para o convento. O telefone, um Iridium, nome que eu nunca tinha ouvido, mas ficou gravado na minha memória para sempre, só funcionava no exterior e não era fácil conseguir ligação. A hora que eu tinha que falar com São Paulo era justamente quando os mosquitos que transmitem a malária estão mordendo. A bateria do meu laptop pifou, só funcionava na tomada, o fio não era grande o bastante. Às vezes eu copiava tudo num bloco. E na hora de entrar ao vivo... estava noite fechada e sem luz eu não podia ler droga nenhuma do que tinha preparado! Um dos únicos lugares onde o telefone satélite funcionava era perto da rua. Uma vez eu estava falando ao vivo e soltei, na maior naturalidade “desculpem, mas vai passar um tanque aqui do lado”. Mal acabei de falar e percebi que podia parecer que eu estava fazendo onda. Mas o tanque todo mundo deve ter ouvido, porque aquelas lagartas no asfalto são de deixar surdo mesmo! E o diabo do tanque estava a dois metros de mim...Bom, quatro dias depois, o telefone satélite morreu também e no quinto eu estava batendo às portas dos agora meus amigos, os bombeiros portugueses. Que morreram de rir, claro! Dei tanto azar que toda a rede de satélites Iridium pifou naquela época. Novamente, nós eramos dezenas de jornalistas desesperados. Um dia eu consegui convencer o chefe da rede das Falintil, a guerrilha do Timor , de Díli a me levar para o Quartel General onde eles estavam acantonados. Quando o responsável me viu, quase caiu duro “Como você sabia onde nós estávamos?”. Bom, eu tenho as minhas fontes... E lá fui eu, sozinha com eles, no meio dos geradores elétricos e cadeiras, para o QG das Falintil. E o maldito telefone não funcionou, eu era a única jornalista e não pude falar ao vivo de lá. Falei no dia seguinte, dos bombeiros, mas foi a maior frustração...

P- Quem vai para uma cobertura dessas? Quem faz esse tipo de trabalho?
R- O filme “Harison’s Flowers”, do Elie Chouraqui, sobre os correspondentes de guerra abre com uma frase: “Existem dois tipos de pessoas, as que viram a guerra e as outras”. Verdade que não tem ninguém de muito normal num lugar desses. E você sai de lá menos normal ainda. Quem pensa que os jornalistas vão por dinheiro é porque não entendeu nada, não conhece patavina da profissão e certamente nunca esteve numa guerra. Ninguém faria isso por dinheiro. Você ganha muito mais em casa, sem sair da cadeira, fazendo assessoria de imprensa, consultoria ou jornalismo financeiro. E tem gente que paga pra ir, que banca tudo sem garantia de vender a matéria depois. Aliás, quem morre primeiro geralmente são os freelancers, que investiram o que tinham e o que não tinham na cobertura. Eles têm que mostrar a que vieram rapidamente, sabem que não podem ficar muito tempo. São os que têm menos infraestrutura por trás, as piores condições de trabalho, muitas vezes são os que se arriscam mais, os que voltam para buscar o material fotográfico num lugar em chamas, onde tem ameaça de bomba ou que resistem quando querem tirar ou roubar o material. O que você quer que eles façam? É o meio de trabalho deles!

P- Por que as pessoas vão?
P- Aí é mais complicado. É uma mistura de idealismo, de espírito de aventura, de busca de reconhecimento profissional, tem um pouco de autoafirmação e certamente uma busca de si mesmo, de absoluto. O problema é a engrenagem. Uma vez que você entra, é difícil sair. Nós brincamos muito no Timor sobre a “síndrome dos correspondentes estrangeiros”. A adrenalina vicia. Não posso garantir no sentido próprio, mas no figurado é das drogas mais perigosas que existem. Você precisa sempre aumentar a dose, fazer durar mais tempo e tem até síndrome de abstinência. Não é piada, muita gente entra em depressão depois de uma situação dessas. Você vive sob tensão 24 horas por dia e depois cai de uma vez. Fora as coisas terríveis que você vê e não tem tempo de assimilar. Tem que jogar num canto da consciência e pronto. Você não pode sentar no chão e chorar a cada horror que você vê, inclusive porque é perigoso. E não dá tempo. Além de tudo, você está ali pra trabalhar. Entre os correspondentes da guerra do Vietnã foi registrado um número totalmente anormal de suicídios. Quando eles voltam para casa, nunca no front, claro. Numa guerra você vive sobre o fio da navalha 24 horas por dia, pode viver ou morrer, quase a cada segundo. As pessoas com quem você convive, também. Isso torna tudo muito intenso, radical, para um lado como para o outro. Os momentos de angústia, medo, dor são terríveis, mas os de alegria, amizade, emoção, são igualmente fortes. Você está numa situação terrível de tensão e de repente alguém faz uma piada, do humor mais negro, geralmente, e todo mundo ri até chorar! Ai um dia você volta pra casa e tem que pagar o aluguel, se preocupar com a data de vencimento da luz, procurar uma vaga no estacionamento, fazer fila na caixa do supermercado. Nada disso tem sentido mais. Nos casos mais graves, a vida não faz mais sentido. É outro planeta. O João Pedro, do Diário de Notícias, uma das pessoas mais fantásticas e divertidas que eu conheci lá, contava uma história que é perfeita como exemplo. Cada vez que ele chega em casa, os filhos começam a reclamar que o bife não está bem passado, a mulher que um dos elevadores do prédio está parado. Ele fica indignado, claro, imagine, ele está voltando de lugares onde as pessoas nem sonham com um bife, mal tem eletricidade, quanto mais elevador! Mas a mulher dele faz botar os pés no chão “Calma, aqui não é o Timor, a Bósnia nem a África.” É preciso ter muita lucidez pra saber passar de um mundo ao outro. E saber quando parar. O problema é que você perde a noção do risco. Até eu senti isso no final. Você escapa de uma, de outra, chega uma hora que começa a achar que não vai acontecer nada com você. Além disso o cansaço, físico e nervoso, vai se acumulando, afeta a sua capacidade de julgamento. Juntou com essa sensação de imunidade, esse ou vai ou racha ao qual você é obrigado tantas vezes, aí fica muito perigoso.

P- Quais as qualidades que alguém precisa ter para trabalhar num lugar desses?
R- Dormir pouco. Comer pouco. Andar muito. Aguentar o calor, o frio, os mosquitos. E não perder o bom humor. Ajuda muito, pode crer.

P- Que conselho você daria aos jovens que querem trabalhar como correspondente de guerra?
R- Primeiro, ninguém precisa ter medo de “ser mandado” cobrir uma guerra. Eu sempre morro de rir quando as pessoas pensam que a gente é mandado. Ninguém corre esse risco! Em qualquer redação tem gente brigando pra ir. Segundo, se informar muito bem, fazer contatos antes.E colocar na cabeça que não é preciso ser Indiana Jones. É mais útil ser o Dr. Jones. Ninguém precisa saber pilotar avião ou pular de penhascos. Agora, você tem que ser capaz de analisar uma situação e saber onde põe os pés, fazer o que em sociologia a gente chama de análise de conjuntura. Tem que saber quem é quem, quais as forças em presença, como elas podem evoluir. Não é uma questão teórica. A sua vida depende disso. Escolher o front errado, o momento errado, confiar nas pessoas erradas, significa a diferença entre a vida e a morte. E isso evolui a cada dia, a cada hora às vezes, você tem que se informar o tempo todo e ser capaz de analisar essas informações. E claro, os melhores erram, senão ninguém morria. Nem era sequestrado ou tomado como refém. Ah, evitem os coletes.

P- Que coletes?
R- Uns coletes cáqui, cheios de bolsos para todo lado, que os jornalistas adoram. Quando encontrei o Osmar Freitas Jr., meu colega da Isto É e amigo desde o tempo da faculdade, fui logo gozando: “Cadê o uniforme, Osmar?” E ele: “Que uniforme?” O uniforme de correspondente de guerra, o colete cheio de bolsos! “Mas você está louca! Melhor pintar um alvo vermelho escrito: jornalista, atire em mim!” Eu adoro o Osmar, que já tinha entendido tudo desde o tempo da faculdade. E foi um dos primeiros a chegar no Timor.

P- Você voltou a ver as pessoas que encontrou no Timor na primeira vez?
R- Claro, e foi fantástico! Encontrei quase todos os meus colegas, de diversas nacionalidades. Os especialistas de um país são quase sempre os mesmos, no Timor também. Para fazer “um ano depois”, os jornais, rádios, agências, televisões vão mandar quem viu como era antes, conhece a história, as pessoas, tem fontes. Nós pudemos fazer jantares de verdade desta vez, para nos vingar da comida em lata que tivemos que dividir! E o papo era fantástico, conversa de ex-combatentes, como a gente diz... É um tal de “Lembra aquela vez “ que não acaba mais. Em diversas línguas ao mesmo tempo.

P- Como foi no Camboja?
R- Os Khmers vermelhos ainda estavam ocupando boa parte do país, controlavam regiões inteiras. Antes de dar um passo – literalmente, o país tem milhões de minas – você tinha que se informar, com as organizações humanitárias, os raros estrangeiros, os outros jornalistas. Para ir de uma cidade à outra, a situação era complicada: “Você não pode ir de trem porque os Khmers Vermelhos sequestram os estrangeiros para pedir resgate – já mataram três – e colocam minas na linha. Nem de barco, porque os bandoleiros atacam, muito menos de carro, a não ser que espere o comboio das organizações internacionais, que sai com dois caminhões de soldados na frente e dois atrás, mas tem que esperar dez dias. Sobra o avião"- me explicaram. E o que me garante que os Khmers Vermelhos não vão colocar uma bomba no avião? “Nada, claro, a não ser que metade dos passageiros deve ser Khmer Vermelho também, como aliás o garçom que está nos servindo” – resumiu o diretor de uma organização humanitária. Mesmo assim, consegui acompanhar o trabalho dos desminadores nos campos minados, visitar o ateliê de Handicap Internacional onde são feitas as próteses para os mutilados nas explosões de minas, os hospitais dos Médicos Sem-fronteiras, com passagens pelos lugares que até os cambojanos evitam, o pavilhão dos tuberculosos e da malária. Na porta do hospital existe uma placa inacreditável para gente normal. Com os símbolos barrados, como “é proibido fumar”, em vez do cigarro, tem revólver, faca, metralhadora, minas, granadas. Confesso que dei um fora memorável. Aquela placa parecia tão inacreditável, surrealista que perguntei ao diretor do hospital, que me acompanhava: “Isso é sério?” E ele” Você acha que a gente ia brincar com esse tipo de coisa? Os guerrilheiros, os bandidos, bandoleiros, sabe lá quem, entram no hospital à noite, apontam a arma para a cabeça do médico e dizem: Você vai me atender agora, vai fazer isso e aquilo. Nenhum médico mais quer trabalhar à noite. Nós não nos recusamos a tratar ninguém, guerrilheiro, bandido, Khmer vermelho, nós não perguntamos nada. Mas um médico não pode trabalhar com uma arma na cabeça”. Os desminadores também são fantásticos, personagens que não existem. Os que eu acompanhei eram franceses. Você já imaginou o tipo de pessoa que precisa ser para passar o dia inteiro desmontando minas? E você tem que se impor. Eles me mostraram o “Museu da Mina”que eles mesmos fizeram, me levaram para os depósitos, para ver as explosões. Um deles pegou um pacote de fotos e desafiou: “Você tem estômago forte? Já viu o que sobra de um homem que explode numa mina antitanque?”. Nessas horas você não pode nem piscar. “Não tenho. Mas quero ver”. E eram amigos deles que estavam naquelas fotos terríveis, fazia mal para eles também. Eles vivem nesse fio da navalha, tendo que exorcizar a ideia da morte... À noite, depois disso, nós jantávamos no melhor restaurante do lugar, eles levantavam, puxavam a cadeira para mim, como se a gente estivesse no restaurante mais chique de Paris! Até vinho francês eles tinham na geladeira. E, no dia seguinte, todo mundo acordava às cinco da manhã e ia desmontar minas! No final, ganhei um detonador de granada de presente! Deve ser uma espécie de condecoração! Também tenho cartuchos de bala do Timor.

P- E a Albânia, por que você foi?
R- Sempre sou eu que decido aonde vou e proponho para as revistas ou a Radio. A Albânia foi o único lugar que me pediram para ir, a revista Caminhos da Terra. É claro que aceitei no ato! Eu nem sabia como chegar lá nem mesmo se ia poder andar sem segurança na rua. Uma equipe da televisão belga, composta de vários marmanjos (repórter, cameraman, sonoplasta, tradutor e motorista) tinha sido assaltada pouco antes de eu ir e levaram até as rodas do carro. Imagine uma moça sozinha! É claro que me informei antes, fui atrás de contatos. No final, fiquei 15 dias, sem o menor problema, morando na casa de uma família albanesa que me adotou, assim como os amigos deles. Naturalmente, a reportagem saiu ótima, do ponto de vista das pessoas comuns, contando a vida do país como realmente é, já que eu partilhei tudo com eles, inclusive a falta de água e luz. Mas na hora que cheguei no prédio onde eles moravam e olhei para cima, quase voltei para casa! Imagine um cortiço, um prédio de tijolo, sem reboque, com a entrada suja, os corredores grafitados, um ar de fim de mundo. Era no quinto andar. Sem elevador claro! E eu ia morar ali quinze dias com eles! No final, o apartamento, por dentro, era normalíssimo, limpo, todo arrumadinho. O que é coletivo, ninguém cuida mais, eles ficaram alérgicos com 50 anos de comunismo. Eu andava quilômetros a pé por dia, num sol de rachar, com meu equipamento fotográfico nas costas. Praticamente não tem transporte público. Os únicos taxis de Tirana ficam na praça principal. Quer dizer você só pode usar para voltar, tem que se virar para ir. Como não tinha nenhum estrangeiro, eu nunca encontrei nenhum, em poucos dias, todo mundo me conhecia! Acabei conseguindo fazer coisas que dificilmente conseguiria em outras circunstâncias, como fotografar a “Bolsa de Tirana”. Na época, eram cambistas que ficavam num canto da praça. Mas eles tinham sacolas com duzentos mil dólares dentro! Eles não mostram aquilo para ninguém, mas acabaram posando para mim, com o dinheiro e tudo. Isso porque eu tinha amigos na praça, principalmente um, um professor de Geologia, que ganhava a vida como cambista ali também e era amigo da família com quem eu morava. Todo dia eu passava lá para conversar com ele, que era uma pessoa superculta, bem informada, trocar idéias. Ele me apresentava os amigos, professor de Filosofia daqui, doutor em economia dali, tinha até um Paleontólogo. Todos cambistas na bolsa de Tirana, no meio da praça! Eu nem precisava sair dali para fazer entrevistas. A Albânia é o país mais poliglota que eu já vi. O nível de escolaridade é muito alto, eles nunca puderam sair de lá e só tem a televisão – principalmente as estrangeiras como distração. Na casa onde morava, eu falava inglês com o pai, francês com a mãe, italiano com as duas filhas e espanhol com a vizinha. A mesa parecia uma conferência das Nações Unidas.

P- E a Birmânia, por que você foi?
R- Essa é a história mais longa e complicada. Como nas lendas antigas, levei sete anos para conseguir entrar na Birmânia, um dos países mais fechados do mundo. A primeira vez foi em agosto de 1988, justamente durante a revolta popular seguida de um golpe de estado que fez 3.000 mortos. Foram 15 dias tentando em todas as fronteiras, mas todos os estrangeiros estavam sendo evacuados ou expulsos, era impossível entrar. Depois disso o país se fechou ainda mais e ficou quase impossível viajar. Os vistos eram só de oito dias, num país maior que a França, com transportes lentos e complicados ou 15 dias, com roteiro e guia impostos pelo governo. Não era essa a Birmânia que eu queria ver. Durante todo esse tempo, continuei seguindo de perto tudo o que acontecia no país, lendo todos os livros, reportagens e assistindo documentários a respeito. Torci pela vitoria do movimento democrata nas eleições, sofri com a repressão que se seguiu à avalanche de votos que eles obtiveram, com a prisão da líder Aung San Suu Kyi, vibrei quando ela ganhou o Prêmio Nobel na Paz. Só não dava para comemorar porque seu marido declarou “Não posso garantir nem que ela ainda esteja viva”. Assim que o visto passou a ser de um mês, corri até a embaixada. Finalmente consegui chegar em Rangum em março de 1995. Ao ver o aeroporto, na época pouco mais que um galpão na pista, pensei seriamente em voltar dali mesmo. Era a “síndrome de Rangum” batendo forte. Quando alguém esperou sete anos por uma coisa, imaginou e sonhou com um país, ele nunca vai estar à altura da expectativa, é impossível. Acabei sendo a última passageira a descer do avião. Pois a Birmânia não só não decepcionou como ultrapassou toda e qualquer expectativa. De todos os países que visitei até hoje (cerca de 50), a Birmânia é o que se transformou em paixão absoluta e total. Tanto que voltei oito vezes em cinco anos, percorrendo diferentes regiões e hoje conheço melhor essa terra do outro lado do planeta que meu próprio país. Parece piada, mas sou reconhecida na rua, as pessoas me cumprimentam no mercado, nas lojas. A polícia política também, que me fichou e fotografou quando saía da casa de Aung San Suu Kyi. Uma vez, num trem em direção à Alta Birmânia, conversando com o passageiro do lado, que nunca saiu do país, descobrimos que temos cinco amigos em comum!
Entrar em contato com membros da oposição é complicado e perigoso. Tive que fazer as entrevistas clandestinamente. Várias organizações de direitos humanos me advertiram: o simples fato de ir visitar certas pessoas põe a vida delas em perigo. “Os dissidentes políticos são vigiados, seguidos pela polícia, as linhas telefônicas grampeadas. Parta sempre do princípio que você está sendo seguida”- me avisaram. Para evitar problemas deixei credencias, cartões de vista, gravador e até agenda em casa. Nada é mais “bandeira” no mundo que caderno de telefone de jornalista. Os encontros são complicados, do tipo, vá até a rua tal, entre na segunda loja de móveis à direita, pergunte por Fulano, dizendo que vem da França comprar jade. Jade numa loja de móveis? Pois é. Para encontrar o Dr. Harry, deputado eleito que passou dois anos na prisão, tenho que dizer que peguei insolação e quero uma consulta. Peço desculpas pela mentira. “Eu vi que você não estava com jeito de insolação – ele riu. A cada vez é preciso sair do hotel a pé, andar duas quadras, tomar um taxi, descer num local frequentado, atravessar a rua, tomar outro taxi, sempre olhando se não tem ninguém atrás. Brincar de Mata Hari não me diverte nada, mas isso dá uma ideia do clima em que vive o país. Não que eu corresse grandes riscos, a não ser a expulsão e passar algumas horas desagradáveis numa cela de Rangum. Mas muita gente foi condenada a 20 anos de prisão por ter dado uma entrevista ou presa por ter conversado com estrangeiros suspeitos. Eu não posso viver com isso na consciência. Lembro que estava na sede da Liga Nacional pela Democracia, Khin Win, membro do Comitê Central que estou entrevistando me avisa. “Não olhe agora, você está vendo as duas casas aqui em frente? Tem pelo menos seis homens do serviço secreto lá dentro, com teleobjetivas, fotografando e tentando descobrir com quem estou falando e o que você está fazendo aqui”. Quando saí da casa de ASSK fui mais fotografada que modelo em passarela e a polícia me fichou em regra. Uma noite, voltando para o hotel, meus amigos tiveram que me deixar a duas quadras porque o trânsito estava desviado. Em pouco mais de 100 metros a pé cruzei três patrulhas, duas da polícia e uma do exército, que perguntaram onde eu ia. Eles estavam estarrecidos de ver uma moça andando sozinha de madrugada e pareciam mais preocupados em me proteger do que outra coisa. Acabei ganhando uma escolta armada de metralhadoras até a porta do hotel.

P- Você vai sozinha?
R- Vou. No começo por necessidade, questão de verba. Depois por costume. Hoje eu não sei se faria diferente. Eu posso perfeitamente trabalhar com um fotógrafo ou toda uma equipe em Paris, Bruxelas ou em qualquer lugar normal, o que às vezes faço mesmo e com prazer. Mas na hora do perigo, eu decido sozinha. Cada um sabe os riscos que pode e quer correr. É uma decisão pessoal e intransferível. Quando a sua vida está em jogo, ninguém pode tomar por você, você não pode tomar por ninguém. É terrível quando um quer ir e o outro não.

P- Como você faz para entrar nesses países?
R- Faz algum tempo, recebi o que meus amigos chamam, de gozação, de o “Oscar dos Globetrotters”. A embaixada teve que grampear dois passaportes um no outro, porque acabaram as páginas do primeiro ainda em plena validade! O mínimo que se pode dizer é que impressiona, dos guardas de fronteira aos outros viajantes. O problema é que chamava demais a atenção e troquei rapidamente. A maioria das vezes não declaro a profissão. Dizer que é jornalista num país não democrático é um risco que não vale a pena correr. Sempre declaro como profissão “dona de casa”. Não é exatamente mentira, como todo mundo, tenho uma casa para cuidar. Só que, com os quase 10 kg de equipamento fotográfico que carrego sempre comigo, onde quer que eu vá e o passaporte lotado de carimbos exóticos, países em que a maioria das pessoas jamais põe os pés, o meu “dona de casa” está cada vez menos convincente.No ano passado eu estava com o que os meus amigos, de brincadeira, chamavam de o Oscar dos Globettroters: um passaporte grampeado no outro. Ainda era válido, mas tinha tantos carimbos e vistos que acabaram as paginas. E olha que não preciso de visto pra quase lugar nenhum, tenho passaporte europeu. Troquei rapidinho. Muita suspeita essa “dona de casa”...

P- Você é muito corajosa?
R- Isso já virou piada. Ao contrário do que as pessoas imaginam, não levo o menor jeito para Indiana Jones. Não sei dirigir, não tenho nenhum senso de orientação, sou incapaz até de saber qual é a direita e a esquerda sem pensar meia hora, tenho claustrofobia, sou distraída daquelas de cair em buraco na rua, sou capaz de me perder até num corredor. Mas sei me virar para chegar sozinha em qualquer lugar do mundo e aprendi a guardar o sangue frio em situações que colocariam a maioria das pessoas em pânico total. Pelo menos até agora. Um dos melhores amigos, um diplomata que foi meu vizinho em Bruxelas, ao ouvir minhas aventuras pela Albânia, Birmânia, Camboja, ficou tão impressionado que soltou um :“Nossa, como você é corajosa!”. “Corajosa como? Quando chego sozinha num lugar estranho eu tenho tanto medo que nem saio do hotel na primeira noite. Nem para jantar! Eu acho que não vou conseguir fazer a matéria, que não vou achar as pessoas que estou procurando, que não vou conseguir chegar ao lugar que estou querendo, que vai dar tudo errado! Depois de passar uma noite quase sem dormir, cheia de pesadelos, eu acordo às cinco da manhã, saio para a rua e faço tudo que tenho que fazer. A cada vez é assim!” Resposta dele: “Então você é a mulher mais corajosa do mundo! Muito mais do que eu imaginava!”. Se coragem for isso, então eu sou...

Um comentário:

Anônimo disse...

Que entrevista maravilhosa! Grata a esse blog por compartilhar conosco essas informações que nos fazem ter orgulho de contar com profissionais desse porte.
Rosely, você é um exemplo de profissinalismo e competência, sem contar que é amiga das verdadeiras! Forte abraço! Bel